O Conto de Ano Novo

O Conto de Ano Novo

O Conto de Ano Novo

Eu observava o resto do vinho na minha taça rodando e rodando enquanto brincava com ela, o vento sacudindo meus cabelos pra todos os lados. Eu raramente abria a janela do que quarto, mesmo que estivesse muito calor. Besteira de uma menina criada no interior, mesmo que um “interior grande”, sabe? Morava em BH há tantos anos e ainda rolava um medinho de alguém escalar o muro e entrar se não tivesse fechada, como se não houvesse uma cerca elétrica no meio do caminho. Mas no ano novo é impossível deixar passar, já eram mais de duas da manhã alguns fogos remanescentes continuavam brilhando lá fora de vez em quando.

Bebi o resto do conteúdo da taça de uma vez e saí rumo à cozinha para lavá-la. Ouvi vovó abrindo a porta do quarto dela e barulho de tosse la dentro, até que ela também me viu e veio em minha direção:

– Achei que você tinha ido dormir…

– É… – respondi – Eu ia mesmo, mas estou sem sono. O vovô tá bem?

Ela deu de ombros.

– Ah, tá, né… Tossindo e tudo mais, impossível dormir com ele do lado. Vou lá em baixo pegar água e um xarope pra ver se melhora…

– Pode deixar que eu vou! Tô indo lá deixar isso… – eu levantei a mão para mostrar a taça – Quer mais alguma coisa?

– Quero não… Vou te esperar aqui, então!

Ela sentou no sofá que ficava na pequena sala do andar superior, logo na frente do meu quarto. Acho que devia estar muito irritada mesmo com o barulho da tosse dele, porque normalmente ficaria do lado “tomando conta”. Seus olhos estavam cansados, o que não era tão comum, vovó e eu sempre fomos meio “corujas”, acostumadas à dormir de madrugada mesmo quando tinha que levantar cedo.

Lavei minha taça, resistindo á tentação de enchê-la novamente com o resto do vinho que eu sabia que ainda estava na geladeira, peguei a água e o remédio e subi as escadas devagar, como se pudesse acordar alguém, mesmo que nenhum deles estivesse dormindo. Vovó estava lixando as unhas enquanto me esperava. Na nossa casa sempre tem alguma lixa em qualquer lugar, nós duas compramos pacotes e mais pacotes e saímos largando pra todo lado. Assim, sempre temos uma à mão, quando é preciso.

Ela sorriu para mim, destacando sem querer todas as ruguinhas lindas do seu rosto, pegou o copo e o frasco, me deu um beijo no rosto e disse “Boa noite”! Quando estava quase chegando na porta, já levantando a mão em direção à maçaneta, eu perguntei:

– Você quer ajuda? Quer que eu durma com ele?

Ela bateu a mão no ar como se dissesse “Não precisa, boba”, e entrou, me deixando sozinha na sala escura. Fui para meu quarto e fechei a porta também.

Aquela não tinha sido uma virada de ano feliz para nenhuma das duas. Era a primeira vez que meu tio Jojo não tinha passado com a gente, já que ter se assumido gay fez com que tivesse sido praticamente expulso da família. Ele nos ligou à meia noite, direto de Salvador ao lado do seu namorado, mas só eu e vovó falamos com os dois. Vovô continuava fingindo que não tinha aquele filho. Depois disso nossa noite foi uma bela merda, não importa quantos telefonemas felizes ou fogos bonitos no céu aparecessem. Os dois foram cedo pro quarto, sem conversar um com o outro, e eu fiquei arrumando a cozinha e bebendo, enquanto remoía minha raiva. Quando terminei subi para o quarto com a intensão de ler minhas mensagens, mas nem tive saco de tocar no celular. Continuei lá, mal humorada, ouvindo a música que vinha de alguma casa vizinha cuja festa de Réveillon estava bem mais animada que a nossa.

Quando finalmente o sono começou a me pegar, resolvi fechar a janela e trocar de roupas. Peguei o celular com o objetivo de cancelar o despertador da manhã seguinte, bloqueei a tela novamente e então decidi que, quem sabe, poderia ter alguma mensagem ali pra me animar um pouquinho. Liguei a WiFi, que estava desativada desde antes do jantar, e vi o balãozinho de notificações subir freneticamente, o número crescendo a cada milésimo de segundo. Deixei ele lá, se atualizando, e fui ao banheiro fazer meu xixizinho da madrugada.

Havia 78 mensagens não lidas me esperando – sem contar os grupos silenciados da faculdade e do trabalho. A mais recente era do grupo da nossa família e continha uma foto de Laurinha dormindo no colo do meu tio, completamente apagada, enquanto ele sorria na beirada do mar. Eu ri. Ela tinha nos ligado pouco depois da virada para desejar que 2018 fosse tão lindo quanto a praia e disse que ia me trazer um presente. Respondi com um emoji de coração e continuei zapeando pelos nomes ainda não abertos quando o vi.

A foto séria ainda era mesma da última vez que nos falamos, há algumas semanas atrás. Isso não era, de forma alguma, incomum, mas reparei mesmo assim. Acho que era porque, por mais que tivesse evitando pensar nisso a noite toda, eu esperava vê-la ali quando resolvesse finalmente abrir o Whatsapp. Cliquei sobre o nome dele.

“Feliz ano novo, Lola! Sdds *coraçãozinho*”

Ninguém fora da minha família me chamava de “Lola”, e ele fora informado disso. Na verdade só sabia que esse apelido existia porque a gente contou sobre praticamente toda nossa vida ao longo do momentos que tivemos juntos. Mas nunca tinha usado. Eu quase conseguia enxergar o risinho de ironia que com certeza estava em seus lábios quando digitou aquilo, como se quisesse não só puxar papo mas dar uma debochadinha junto. E aí, ao pensar nisso, percebi que eu mesma estava sorrindo desde que vi que havia uma mensagem dele no meio de todas as outras.

Ignorando completamente o fato de que, lá no celular dele, o ícone de leitura tinha ficado azul, confirmando que eu recebi o recado, fui respondendo todas as outras pessoas que haviam se dado as trabalho de pensar em mim naquela noite – e ignorei algumas, quando elas vinham de grupos chatos dos quais minha boa educação vinha me impedindo de sair. Por fim, quando não tinha sobrado mais nenhuma e não dava mais pra evitar, finalmente escrevi:

“Feliz ano novo, Fê!”

Enviei e me arrependi na mesma hora da maneira seca como ela soou. Não era meu feitio fingir desinteresse quando, na verdade, eu ainda estava interessadíssima. Então completei:

“Muitas sdds! *carinha com olhos de coração*”

Desliguei a WiFi novamente, antes que ele pudesse dizer qualquer outra coisa ou mais alguém resolvesse prolongar algum assunto. Eu estava me segurando um pouco para não rir mais, porque se pensar bem, sabe, a noite não tinha sido de todo mal…

Esse é o segundo conto da série “Contos de Aurora”, que vai mostrar dez datas comemorativas do ano de uma mulher como outra qualquer, que eu vou conhecer junto com vocês, enquanto traço a vida dela devagarzinho… Feliz ano novo!

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Maresia

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  • Lulu on the sky

    Muito interessante esse conto de ano novo.
    Feliz 2018!

    Big Beijos,
    LULU ON THE SKY

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  • Maíra

    você escreve tão bem <3

    to adorando esses contos, vou ler os outros! ahahahhaa

    Feliz 2018!

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  • Renata

    Apenas com alguns bons meses, vim conferir o conto! ehehe
    Adorei ver mais do seu lado contadora de histórias por aqui (não que os posts tradicionais não sejam o contar de histórias, mas acho que dá pra entender, né?! ehehe)! Achei super gostosa a narrativa e adoro contos exatamente por serem esses fragmentos de um todo desconhecido, mas que, ao mesmo tempo, conseguem passar uma mensagem ao leitor!
    Curiosa para conhecer os próximos! <3
    xoxo

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