A triste história da profissão que não foi regulamentada

A triste história da profissão que não foi regulamentada

Já narrei inúmeras vezes aqui como acabei caindo de paraquedas no curso de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis da UFMG. De cara confesso que não queria, que só entrei no curso para ingressar na universidade e me mandar dele assim que tivesse a oportunidade, eu nem imaginava do que se tratava direito. Mas passei, entrei e, quando vi, eu não estava mais preocupada quando abririam vagas pro curso de Design por lá pra mudar: percebi que estava gostando, que estava aproveitando, que estava amando. Vi que eu podia transformar aquilo em um sonho e já estava caminhando para torná-lo realidade.

Logo no primeiro semestre, tivemos aula de Ética e Deontologia com uma professora que sempre adorei e, mais tarde, passei a adorar ainda mais quando ela se tornou minha orientadora do TCC. Mas não vamos passar o carro na frente dos bois: vamos focar na matéria em questão. Eu estava ali, cruazinha e adolescentezinha, sem entender nada da vida e essa matéria me fez cair na real um pouco sobre como o mundo dos adultos funcionava. Naquele momento, descobri uma coisa que nunca tinha imaginado, que nunca nem tinha parado pra pensar: existem profissões que nem são regulamentadas! E pior, descobri também que todas aquelas pelas quais eu tinha (e ainda tenho) afinidade são assim. Quer piorar mais um pouco? Pois bem, a profissão na qual eu estava me graduando era uma delas.

Mas afinal de contas, o que significa dizer que uma profissão não é regulamentada? Segundo o Léxico (acesso no dia 22/09/13 às 23:28), “regulamentar” significa “Fazer regulamento a, sujeitar a regulamento; regular (…) Relativo a regulamento.”. Ou seja: uma profissão não regulamentada é o contrário disso: não está sujeita a um regulamento ou norma. Em alguns casos isso pode ser bom? Sim. Mas em outros é um Deus nos acuda.

Quando a disciplina de ética terminou, nós já havíamos discutido o bastante para eu entender que a coisa não seria fácil. Existiam projetos de lei circulando por ai, mas o interesse político nem sempre caminha ao lado do interesse daqueles que realmente importam na situação. À medida que o assunto vinha sendo rediscutido ao longo dos cinco anos que permaneci na faculdade, eu ia entrando cada vez mais em desespero e perdendo todas as minhas esperanças. Eu já tinha decidido que era aquilo que eu queria ser e, olha, sinceramente? Até que eu faço direitinho! Não sou perfeita e estou longe de saber tudo na vida, longe de ser a melhor (mesmo porque já convivi diretamente com muita gente melhor do que eu) mas, verdade seja dita, bem feito fica! Aliás, não somente bem feito, mas feito com amor, feito com carinho e, acima de tudo, feito com conhecimento, técnica e ética. No fim das contas o meu problema não seria fazer as coisas, seria pior: ONDE FAZER? Quando, com quem? Com que dinheiro? E ainda COMO fazer? Porque logo de cara, ainda longe de ser adulta, eu me vi “lançada” no mercado de trabalho como estagiária e foi quando eu vi na prática o que já tinham me falado tantas vezes na faculdade.

Eu vi que tava tudo errado.

E sabe o que é pior? Ninguém se importa pelo fato de estar tudo errado. E nós tivemos uma prova disso essa semana. Depois de percorrer um longo caminho o Projeto de Lei 4042/2008 finalmente chegou nas mãos da Presidenta Dilma ainda esse mês. E foi vetado. Sim, minha profissão continua sem ser regulamentada. O argumento é que a falta da formação não traz danos à sociedade. E é isso que eu vim aqui mostrar pra vocês que é mentira. Que eu quero PROVAR que é mentira. Lembra que eu falei ali em cima que eu vi que tava tudo errado? Pois é: eu vou contar para vocês o que vi!

Eu já fui em visitas a igrejas ainda durante a faculdade e cheguei perto para ver o quão porca era a reintegração cromática feita em cima de douramentos, e feita por empresas grandes e respeitadas. Vou contar um segredo pra vocês, esse ainda é meu grande defeito, a tal da reintegração. Sendo assim, se não dou conta, não faço! Mas ainda assim sei fazer melhor que aquilo, acreditem.

Já trabalhei como estagiária alimentando Banco de Dados no Excel enquanto estudantes de cursos de licenciatura naaaada relacionados à conservação e restauração trabalhavam no laboratório de restauração daquele mesmo lugar.

Eu já vi gente enfiando o balde que deveria encher de água deionizada dentro do galão onde estava a mesma achando que estava economizando tempo, quando na verdade estava contaminando aquela água devolvendo para ela todos os íons e impurezas do balde. E todo mundo ao redor fazer o mesmo, de boinha.

Já vi colas e adesivos mais absurdos sendo utilizados para encadernação de conservação, deixando a lombada do livro toda dura e arriscando aquelas páginas de quebrarem, ao invés de torna-lo maleável. Uma das maiores regras da conservação-restauração, que diz que todo processo deve ser reversível, foi por água abaixo ali.

Eu já tentei explicar por que uma, duas, dez, várias coisas não devem ser feitas pois prejudicaria a obra a ser restaurada e tive que ouvir pessoas chamando aquilo de “minúcia” e “preciosismo”.

Já vi jovens aprendizes sendo contratados para trabalhos de restauração simplesmente por ser uma mão de obra barata, mesmo sem saber nada sobre o assunto. E depois, claro, saindo de lá afirmando ter muita experiência na área, porque eles na verdade nem sabem tudo o que envolveu o trabalho que foi feito e não têm culpa disso.

Eu já vi outras pessoas que nunca estudaram nada do gênero falarem que têm experiência também por causa de seis meses de estágio, e depois ir lá e demonstrar conhecimento zero.

E sabe o que é pior? Eu já tive que ouvir muitas vezes, incontáveis vezes, que eu estou no caminho perdedor, que eu não posso continuar QUERENDO ser pobre a vida inteira: que eu escolhi e continuo escolhendo errado por querer exercer MINHA profissão, na qual tenho diploma e carga prática e científica para exercer, da maneira correta.

Pois eu digo agora: escolhi certo, sim, continuo escolhendo certo. Porque eu posso não interferir naquilo que causa danos à sociedade, mas e à história dela? E ao patrimônio? Deixá-lo aí, nas mãos de situações que descrevi acima, não é um dano à NOSSA MEMÓRIA? Por que, me digam, os cinco anos que eu passei dentro da faculdade são inferiores aos cinco anos que tantas pessoas em cursos “melhores” de profissões regulamentadas passam? Porque foi feito com gosto, não com ambição? Não, isso não é ruim: isso tem que ser é valorizado. Por isso é hora de lotar as caixas de e-mail, é hora de “xingar muito no Twitter”, é hora de não ficar calado, é hora que querer a regulamentação da profissão de conservadores-restauradores. E a de vocês também, que exercem tantas outras, que lutaram e estudaram por isso, amam o que fazem e merecem ser reconhecidos como tal!

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